quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Os primeiros momentos de Hitler

Alemanha, 1923. Um talentoso entrevistador de origem germânica, mas radicado nos EUA - que também viria a ser um destacado poeta e escritor de seu tempo - se encontra na Baviera com um líder partidário de pouca expressão nacional. Sua militância de extrema direita, se confunde com outros grupos de ideologias semelhantes e contrárias, tão comuns àquele país devastado, recém saído de uma grande guerra mundial. Desconhecido da maioria, suas idéias já demonstravam naquela época o grande perigo que o mundo viria a presenciar alguns anos depois.

Munique na década de 1930
Adolf Hitler, era austríaco. Serviu na primeira guerra mundial e nunca atingiu uma patente superior à de cabo (o exército alemão impedia que estrangeiros ascendessem na hierarquia).  Nesse período, obteve destaque como mensageiro, posição inferior e perigosa, vulnerável aos ataques inimigos. Sequelado, teve ferimentos à bala em uma das pernas e perda parcial da visão por exposição ao gás mostarda. Assistiu incrédulo à rendição alemã, assim como seus demais compatriotas, pois acreditava que o exército alemão não tinha sido, de fato, derrotado. Em 1919, ainda no exército, foi designado para investigar, como espião, um movimento radical incipiente em Munique, conhecido como "Partido alemão dos trabalhadores", constituído em sua maioria por membros antissemitas, nacionalistas extremistas e anti-comunistas.

Fardamento ilustrativo dos Camisas-marrons
Propaganda de recrutamento feminino





















Identificando-se com a mesma ideologia que compartilhava há tempos, Hitler se encontrara com seus iguais. Filiou-se imediatamente, se tornando um de seus membros mais ativos. Sua facilidade de oratória lhe fez galgar posições rapidamente e, em menos de 2 anos, tornou-se chefe do partido. Sob o seu comando, rebatizou-o para "Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães", que recrutava jovens sem perspectiva de futuro (muitas vezes forçadamente), incutindo nestes suas idéias mirabolantes. Naquela época, cada partido dispunha de uma milícia ou guarda pessoal, e a dos Nacionais-socialistas em 1923 já contava com mais de 3000 homens. Conhecidos como os "camisas-marrons", ganharam certa notoriedade em Munique através da violência e intimidação dos partidos rivais. 

Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, reunião em 1922
A caótica Alemanha do pós-guerra simpatizava com a organização e severidade dos Nacional-socialistas. É neste momento que George Sylvester Viereck realiza sua entrevista. Impressionado com o que ouvira, anotou em profecia: "Este homem, se sobreviver, fará história, para o bem ou para o mal". Poucos meses depois, os Nacional-socialistas orquestram um golpe, duramente sufocado pela polícia bávara, em que grande parte da sua liderança fora morta ou presa. O Golpe da cervejaria, ou Putsch de Munique, tinha como objetivo tomar as rédeas do governo bávaro para, em seguida, imitar a famosa Marcha sobre Roma de Benito Mussolini, numa revolucionária "Marcha sobre Berlim". O partido foi erradicado pela polícia e Hitler foi condenado a uma pena de 5 anos de prisão, mas cumpriu apenas 9 meses. Nesse curto período, recebia cartas de apoio vindas de toda a Alemanha, motivando-o a escrever o best-seller Mein Kampf, o manifesto ideológico do "novo" partido Nacional-socialista refundado em 1925. Hitler reorganiza sua milícia, criando a SS, e, posteriormente a SA, uma das maneiras de burlar as sanções à militarização alemã, impostas pelo Tratado de Versalhes.

Militantes Nacionais-socialistas na Praça Central de Marienplatz durante o Putsch de Munique, em 1923
Em outubro de 1929 ocorre o grande Crash da Bolsa de Nova Iorque, dando início ao pior e mais longo período de recessão econômica do século XX. A economia americana já demonstrava resultados negativos nos trimestres antecedentes e a Alemanha, que vinha em processo de recuperação, sofre um novo golpe. A economia alemã, basicamente industrial, dependia do comércio exterior e, de repente, cessou todo o ingresso de capitais estrangeiros. As portas do comércio internacional foram abruptamente fechadas. Centenas de indústrias faliram e o índice de desemprego explodiu. No início de 1932 já existiam mais de 6 milhões de desempregados, o que representava cerca de um terço da força de trabalho alemã. A inabilidade do governo (leia-se Partido Social Democrata Alemão) no manejo da economia, ocasiona crescente rejeição popular, permitindo a ascenção dos Nacional-socialistas e também dos Socialistas ("bolchevistas") no parlamento. Os Nazis (Nationalsozialistis) e os Sozis (Sozialistis), de ideologias rivais, criaram um clima de constante desordem por toda a Alemanha, em função dos atos de violência entre seus militantes e simpatizantes. 

"Mãe migrante", símbolo da Grande Depressão retratada por Dorothea Lange
Com as alianças políticas e conchavos, nas eleições de julho de 1932 os nazistas obtiveram 13,75 milhões de votos, que representavam mais que o dobro das vagas dos socialistas no parlamento. Foi decisivo o apoio do Partido Central Católico e de membros da igreja (católica e protestante), que temiam o socialismo ateu, confiscador dos bens eclesiásticos, e simpatizavam com o antissemitismo (culturalmente irraigado na Áustria e no sul da Alemanha). 

Bispado católico em saudação nazista
Em 9 de julho de 1932, logo após as eleições, a entrevista concedida por Hitler a Viereck em 1923 é reeditada pela Revista Liberty. Hitler se tornaria chanceler no ano seguinte e o restante da história todos já conhecemos. Mas naquele tempo, Adolf Hitler era praticamente desconhecido pela opinião pública americana, razão pela qual Viereck, atento ao momento decisivo da história mundial, antecipou-se em sua investigação minunciosa.

O Holocausto - o estúpido resultado da ideologia nazista.

 A entrevista de Adolf Hitler, por George Sylvester Viereck:

"Quando eu assumir o comando da Alemanha, vou erradicar a dívida internacional e o bolchevismo nacional."

Adolf Hitler esvaziou o copo como se em seu interior não contivesse chá, mas a essência do bolchevismo.

"O Bolchevismo…" - continuou o chefe dos camisas marrons (os fascistas da Alemanha), olhando para mim malignamente - "…é a nossa maior ameaça. Extermine o bolchevismo na Alemanha e restaure 70 milhões de pessoas ao poder. A França deve sua força não aos seus exércitos mas às forças do bolchevismo e às desavenças em nosso meio.

"O Tratado de Versalhes e o Tratado de Saint-Germain são mantidos vivos pelo bolchevismo alemão. Os Tratados e o bolchevismo são duas cabeças de um mesmo monstro. Temos que decapitar as duas."

Quando Adolf Hitler anunciou este programa, o advento do Terceiro Império que ele proclamava parecia no final do arco-íris. Então veio eleição após eleição. Cada vez mais seu poder cresceu. Embora incapaz de desalojar Hindenburg da presidência, Hitler é hoje o líder do maior partido na Alemanha. A menos que Hindenburg assuma medidas ditatoriais, ou algum acontecimento inesperado perturbe todos os cálculos atuais, seu partido vai organizar o Reichstag (parlamento alemão) e dominar o governo. A luta de Hitler não é contra Hindenburg. É contra o chanceler Bruening. Mas é duvidoso que um sucessor de Bruening possa se sustentar sem o apoio dos Nacional-socialistas.

Muitos dos que votaram em Hindenburg tinham Hitler no coração, mas algum sentido profundo de lealdade impeliu-os, no entanto, a dar seu voto para o velho marechal-de-guerra. A não ser que um novo líder surja do dia para a noite, não há ninguém na Alemanha, com a exceção de Hindenburg, que possa derrotar Hitler - e Hindenburg tem 85 anos! A não ser que o tempo, a relutância obstinada dos franceses contra Hitler, algum erro de sua parte, ou alguma dissensão dentro das fileiras do partido prive-o da oportunidade de desempenhar o papel de um Mussolini na Alemanha.

O primeiro império alemão chegou ao fim quando Napoleão forçou o imperador austríaco a entregar sua coroa imperial. O segundo império chegou ao fim quando William II, a conselho de Hindenburg, buscou refúgio na Holanda. O terceiro império está emergindo lentamente, mas certamente, embora dispense cetros e coroas.

Eu não encontrei Hitler em seu quartel-general, a Casa Marrom em Munique. Nós discutimos o destino da Alemanha, a cada xícara de chá, na casa de um almirante aposentado da marinha alemã.

"Por que…"- perguntei a Hitler - "…você se autodenomina um nacional-socialista, uma vez que o seu programa de governo é a antítese do senso comum sobre o socialismo?"

"Socialismo…" - ele respondeu, deixando pugnazmente sua xícara de chá - "…é a ciência de lidar com o bem comum. Comunismo não é socialismo. Marxismo não é socialismo. Os marxistas roubaram o termo e confundiram o seu significado. Eu vou tirar o socialismo dos socialistas. O socialismo é uma antiga instituição ariana, germânica. Nossos antepassados alemães possuíam algumas terras em comum e cultivavam a idéia do bem comum. O marxismo não tem o direito de se disfarçar de socialismo. O socialismo, ao contrário do marxismo, não repudia a propriedade privada, não envolve qualquer negação de individualidade e, ao contrário do marxismo, é patriótico. Poderíamos escolher o termo 'Partido Liberal'. Mas optamos por nos chamar de 'Nacional-socialistas'. Nós não somos internacionalistas. Nosso socialismo é nacional. Exigimos o cumprimento pelo Estado das justas reivindicações das classes produtivas, com base na solidariedade da raça. Para nós, Estado e raça são um só."

Hitler não é um tipo puramente germânico. Seu cabelo escuro denuncia algum ancestral alpino. Durante anos, ele recusou-se a ser fotografado. Isso era parte de sua estratégia: ser reconhecido apenas pelos seus amigos, para que, no momento da crise, ele pudesse aparecer aqui, ali e acolá sorrateiramente. Hoje ele já não poderia passar despercebido em qualquer vilarejo alemão. Sua aparência contrasta estranhamente com a agressividade de suas opiniões. Nenhum moderador refinado jamais sacudira os alicerces ou sufocara as bases políticas do Estado.

"Quais são…" - continuei na minha investigação - "…as bases da sua plataforma?"

"Acreditamos numa mente saudável em um corpo saudável. O corpo político deve se fazer ressoar, se a alma é saudável. Saúde moral e física são sinônimos."

"Mussolini…" - eu interrompi - "…me disse o mesmo." Hitler ficou radiante.

"A favelização das cidades…" - acrescentou - "…é responsável por nove décimos, e o álcool, por um décimo, de toda a depravação humana. Nenhum homem saudável é um marxista. Homens saudáveis reconhecem o valor da individualidade, da propriedade. Nós lutamos contra as forças do caos e da degeneração. A Baviera é relativamente saudável, porque ela não está completamente industrializada. No entanto, toda a Alemanha, incluindo a Baviera, está condenada à intensiva industrialização pela pequenez do nosso território. Se quisermos salvar a Alemanha temos de fazer com que os nossos agricultores permaneçam fiéis às suas terras. Para isso, eles devem ter espaço para respirar e espaço para trabalhar. "

"Onde você vai encontrar o espaço para trabalhar?"

"Temos que manter nossas colônias e devemos expandir para o leste. Houve um tempo em que nós poderíamos ter compartilhado o domínio mundial com a Inglaterra. Agora nós só podemos esticar nossas pernas apertadas apenas para o oriente. O Báltico é necessariamente um lago alemão."

"Seria possível…" - eu perguntei - "…para a Alemanha, reconquistar o mundo economicamente sem estender seu território?"

Hitler balançou a cabeça negativamente.

"O imperialismo econômico, como o imperialismo militar, depende do poder. Não pode existir um comércio exterior globalizado, sem um poder globalizado. Nosso povo não aprendeu a pensar em termos de poder e comércio globalizados. Contudo, a Alemanha não pode se estender comercialmente ou territorialmente até que ela recupere o que perdeu e até que ela se encontre. Estamos na situação de um homem cuja casa foi incendiada. Ele precisa de um teto sobre sua cabeça antes que possa iniciar planos mais ambiciosos. Nós conseguimos criar um abrigo emergencial, que nos protege da chuva, mas não estamos preparados para uma chuva de granizo. Azaradamente, o granizo caiu sobre nós. A Alemanha tem vivenciado uma verdadeira avalanche de catástrofes nacional, moral e econômica. Nossa estrutura partidária desmoralizada é sintoma do nosso desastre. As maiorias parlamentares flutuam com o humor do momento. O parlamento abriu as portas para o bolchevismo."

"Ao contrário de alguns militaristas alemães, você não é favorável a uma aliança com a Rússia soviética?"

Hitler evitou uma resposta direta a esta pergunta. E também evitou dar, quando perguntado recentemente pela Liberty [Magazine], uma resposta à declaração de Trotsky de que a sua tomada de poder na Alemanha envolveria uma luta de vida-ou-morte entre a Europa, liderada pela Alemanha, e a Rússia soviética.

Não convém a Hitler atacar o bolchevismo russo. Ele pode até vislumbrar uma aliança com o bolchevismo como última carta, se estiver em perigo de perder o jogo. Em uma ocasião, ele insinuou: "Se o capitalismo se recusa a reconhecer que os Nacional-socialistas são o último baluarte da propriedade privada, se o capital impedir a sua luta, a Alemanha pode ser obrigada a lançar-se nos braços da sereia sedutora: a Rússia soviética." Mas ele está determinado a não permitir que o bolchevismo crie raízes na Alemanha.

No passado, Hitler respondeu com cautela aos avanços do chanceler Bruening e outros que desejavam formar uma frente política unida. Tendo em vista o aumento constante de votos a favor dos Nacionais-socialistas, é pouco provável que haja um cenário favorável a uma parceria de qualquer natureza.

"As combinações políticas de que dependem uma frente unida são muito instáveis." - Hitler observou. "Elas impossibilitam quase que totalmente uma estratégia claramente definida. Vejo em todos os lugares o ziguezague entre compromisso e concessão. Nossas forças construtivas são testadas pela tirania dos números. Nós cometemos o erro de aplicar a aritmética e a mecânica do mundo econômico ao nosso cotidiano. Estamos ameaçados por números crescentes e ideais nunca decrescentes. Meros números são desnecessários."

"Mas suponha que a França retalie contra você mais uma vez, invadindo o seu solo? Ela invadiu o Ruhr antes. Ela pode invadi-lo novamente."

"Isso não importa" - respondeu Hitler, completamente apaixonado - "Quantos quilômetros quadrados o inimigo pode ocupar, se o espírito nacional estiver desperto? Dez milhões de alemães livres, prontos para morrer para que seu país possa viver, são mais fortes que 50 milhões, cuja força de vontade está paralisada e cuja consciência de raça está infectada por forasteiros. Nós queremos unir todas as tribos germânicas numa Alemanha maior. Mas nossa salvação pode começar no lugar menos favorecido. Se possuirmos apenas 10 hectares de terra, e estivermos determinados a defendê-los com nossas vidas, esses 10 hectares se tornarão foco de regeneração. Nossos trabalhadores têm duas almas: uma é alemã, a outra é marxista. Devemos despertar a alma alemã. Devemos extirpar o cancro do marxismo. Marxismo e germanismo são antíteses."

As veias na testa de Hitler se destacaram ameaçadoramente. Sua voz encheu a sala.

"No meu projeto de Estado alemão, não haverá espaço para o estrangeiro, para o vadio, para o agiota ou especulador, nem para os incapacitados ao trabalho produtivo."

Houve um barulho na porta. Seus seguidores, que sempre permanecem de prontidão, como guarda-costas, lembraram ao líder do seu dever em uma reunião.

Hitler engoliu seu chá e se levantou.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Mergulho nas Ilhas Fiji



Neste vídeo sensacional, visualizamos detalhes supreendentes da vida subaquática e seu cotidiano paradisíaco em várias colagens de filmes HD em macro

As imagens foram feitas no Jardim de Dakuwaqa, entre as ilhas Tonga e Fiji.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Os últimos momentos de Freud


Fotomontagem de Sigmund Freud em várias passagens de sua vida

Transcrição para o português da última entrevista dada por Sigmund Freud em vida. A entrevista foi concedida ao jornalista alemão (radicado americano) George Sylvester Viereck, em 1926. Deve ter sido publicada na imprensa americana da época. Acreditava-se que estivesse perdida quando o Boletim da Sigmund Freud Haus publicou uma versão condensada, em 1976. Na verdade, o texto integral havia sido publicado no volume Psychoanalysis and the Future, número especial do “Journal of Psychology”, de Nova Iorque, em 1957. Trata-se de uma preciosidade.


S. Freud: Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade.


(Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos. Eu havia visto o pai da psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucos anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me perturbou. Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele uma causa de constante irritação).


S. Freud: Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção. Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.


(Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial).


Por que (disse calmamente) deveria eu esperar um tratamento especial?


A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas – a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?


George Sylvester Viereck pergunta: O senhor teve a fama. Sua obra influi na literatura de cada país. O homem olha a vida e a si mesmo com outros olhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo se uniu para homenageá-lo – com exceção da sua própria Universidade.


S. Freud: Se a Universidade de Viena me demonstrasse reconhecimento, eu ficaria embaraçado. Não há razão em aceitar a mim e a minha obra porque tenho setenta anos. Eu não atribuo importância insensata aos decimais. A fama chega apenas quando morremos e, francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. Minha modéstia não é virtude.


George Sylvester Viereck: Não significa nada o fato de que o seu nome vai viver?


S. Freud: Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não é certo. Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero que suas vidas não venham a ser difíceis. Não posso ajudá-los muito. A guerra praticamente liqüidou com minhas posses, o que havia poupado durante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha fortuna.


(Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa. Freud acariciou ternamente um arbusto que florescia).


S. Freud: Estou muito mais interessado neste botão de flor do que no que possa me acontecer depois que estiver morto.


George Sylvester Viereck: Então o senhor é, afinal, um profundo pessimista?


S. Freud: Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.


George Sylvester Viereck: O senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma que seja?


S. Freud: Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria o homem constituir uma exceção?


George Sylvester Viereck: Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo de imortalidade?


S. Freud: Sinceramente não. Se a gente reconhece os motivos egoístas por trás da conduta humana, não tem o mínimo desejo de voltar à vida; movendo-se num círculo, seria ainda a mesma. Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria, sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro. Pelo que me toca, estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.


George Sylvester Viereck: Bernard Shaw sustenta que vivemos muito pouco. Ele acha que o homem pode prolongar a vida se assim desejar, levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução. Ele crê que a humanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.


S. Freud: É possível que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição. Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readmitir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro: Além do Princípio do Prazer. No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante. Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da “febre chamada viver”, anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção.


George Sylvester Viereck: Isto é a filosofia da autodestruição? Ela justifica o auto-extermínio? Levaria logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hartamann?


S. Freud: A humanidade não escolhe o suicídio porque a lei do seu ser desaprova a via direta para o seu fim. A vida tem que completar o seu ciclo de existência. Em todo ser normal, a pulsão de vida é forte o bastante para contrabalançar a pulsão de morte, embora no final resulte mais forte. Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vem por nossa própria vontade. Seria mais possível que pudéssemos vencer a Morte, não fosse por seu aliado dentro de nós. Neste sentido (acrescentou Freud com um sorriso) pode ser justificado dizer que toda a morte é suicídio dirfarçado.


(Estava ficando frio no jardim. Prosseguimos a conversa no gabinete. Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa, com a caligrafia clara de Freud).


George Sylvester Viereck: Em que o senhor está trabalhando?


S. Freud: Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal para os não médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo. Depois procuram monopolizá-la.


George Sylvester Viereck: O senhor teve muito apoio dos leigos?


S. Freud: Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.


George Sylvester Viereck: O senhor está praticando muito a psicanálise?


S. Freud: Certamente. Neste momento estou trabalhando num caso muito difícil, tentando desatar os conflitos psíquicos de um interessante novo paciente. Minha filha também é psicanalista, como você vê ...


(Nesse ponto apareceu Miss Anna Freud, acompanhada por seu paciente, um garoto de onze anos, de feições inconfundivelmente anglo-saxônicas).


George Sylvester Viereck: O senhor já analisou a si mesmo?


S. Freud: Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros. O psicanalista é como o bode expiratório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados nele. Ele deve praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.


George Sylvester Viereck: Minha impressão é que a psicanálise desperta em todos que a praticam o espírito da caridade cristã. Nada existe na vida humana que a psicanálise não possa fazer compreender. “Tout comprec'est tout pardonner”.


S. Freud: Pelo contrário (bravejou Freud – suas feições assumindo a severidade de um profeta hebreu), compreender tudo não é perdoar tudo. A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento.


(Compreendi subitamente porque Freud havia litigado com os seguidores que o haviam abandonado, porque ele não perdoa a sua dissensão do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito é herança dos seus ancestrais. Uma herança de que ele se orgulha como se orgulha de sua raça).


S. Freud: Minha língua é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu.


(Fiquei algo desapontado com esta observação. Parecia-me que o espírito de Freud deveria habitar nas alturas, além de qualquer preconceito de raças, que ele deveria ser imune a qualquer rancor pessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira, tornava-o mais atraente como ser humano. Aquiles seria intolerável, não fosse por seu calcanhar!).


George Sylvester Viereck: Fico contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que também o senhor demonstre que é um mortal!


S. Freud: Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza; mas, com freqüência, são também a fonte de nossa força.


George Sylvester Viereck: Imagino, observei, quais seriam os meus complexos!


S. Freud: Uma análise séria dura ao menos um ano. Pode durar mesmo dois ou três anos. Você está dedicando muitos anos de sua vida à “caça aos leões”. Você procurou sempre as pessoas de destaque para a sua geração: Roosevelt, o Imperador, Hindenburg, Briand, Foch, Joffre, Georg Bernard Shaw ...


George Sylvester Viereck: É parte do meu trabalho.


S. Freud: Mas é também sua preferência. O grande homem é um símbolo. A sua busca é a busca do seu coração. Você está procurando o grande homem para tomar o lugar do seu pai. É parte do seu “complexo do pai”.


(Neguei veementemente a afirmação de Freud. No entanto, refletindo sobre isso, parece-me que pode haver uma verdade, ainda não suspeitada por mim, em sua sugestão casual. Pode ser o mesmo impulso que me levou a ele. Gostaria, observei após um minuto, de poder ficar aqui o bastante para vislumbrar o meu coração através dos seus olhos. Talvez, como Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem! Entretanto, receio ser muito informando sobre a psicanálise. Eu freqüêntemente anteciparia, ou tentaria antecipar suas intenções).


S. Freud: A inteligência num paciente não é empecilho. Pelo contrário, às vezes facilita o trabalho.


(Neste ponto o mestre da psicanálise diverge de muitos dos seus seguidores, que não gostam de excessiva segurança do paciente sob o seu escrutínio).


George Sylvester Viereck: Às vezes imagino se não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu último encanto, ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o crimonoso e o animal.


S. Freud: Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.


George Sylvester Viereck: Por quê?


S. Freud: Porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais agradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do cão (acrescentou Freud pensativamente) lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de herós antigos como Aquiles e Heitor.


George Sylvester Viereck: Meu cachorro é um doberman Pinscher chamado Ajax.


S. Freud: (sorrindo) Fico contente de que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos querido da casa, se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e o complexo de Édipo!


George Sylvester Viereck: Mesmo o senhor, Professor, sonha a existência complexa demais. No entanto, parece-me que o senhor seja em parte responsável pelas complexidades da civilização. Antes que o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muito questionáveis. A psicanálise torna a vida um quebra-cabeças complicado.


S. Freud: De maneira alguma. A psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou, modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa fora do labirinto do seu inconsciente.


George Sylvester Viereck: Ao menos na superfície, porém, a vida humana nunca foi mais complexa. E a cada dia alguma nova idéia proposta pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema da condução humana mais intrigante e mais contraditório.


S. Freud: A psicanálise, pelo menos, jamais fecha a porta a uma nova verdade.


George Sylvester Viereck: Alguns dos seus discípulos, mais ortodoxos do que o senhor, apegando-se a cada pronunciamento que sai da sua boca ...


S. Freud: A vida muda. A psicanálise também muda. Estamos apenas no começo de uma nova ciência.


George Sylvester Viereck: A estrutura científica que o senhor ergueu me parece ser muito elaborada. Seus fundamentos – a teoria do “deslocamento”, da “sexualidade infantil”, do “simbolismo dos sonhos”, etc – parecem permanentes.


S. Freud: Eu repito, porém, que nós estamos apenas no início. Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes.


George Sylvester Viereck: O senhor ainda coloca a ênfase sobretudo no sexo?


S. Freud: Respondo com palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman: “Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo” (“Yet all were lacking, if sex were lacking”). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase igual naquilo que está “além” do prazer – a morte, a negociação da vida. Este desejo explica por que alguns homens amam a dor – como um passo para o aniquilamento! Explica por que os poetas agradecem a Whatever gods there be / That no life lives forever / And even the weariest river / Winds somewhere safe to sea. (“Quaisquer deuses que existam/ Que a vida nenhuma viva para sempre / Que os mortos jamais se levantem / E também o rio mais cansado / Deságüe tranqüilo no mar”).


George Sylvester Viereck: Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre, mas à diferença do senhor, ele considera o sexo desinteressante.


S. Freud: (sorrindo) Shaw não compreende o sexo. Ele não tem a mais remota concepção do amor. Não há um verdadeiro caso amoroso em nenhuma de suas peças. Ele faz brincadeiras do amor de Júlio César – talvez a maior paixão da História. Deliberadamente, talvez maliciosamente, ele despe Cleópatra de toda grandeza, reduzindo-a uma insignificante garota. A razão para a estranha atitude de Shaw diante do amor, para a sua negação do móvel de todas as coisas humanas, que tira de suas peças o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual, é inerente à sua psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatiza o traço ascético do seu temperamento. Eu posso ter errado em muitas coisas, mas estou certo de que não errei ao enfatizar a importãncia do instinto sexual. Por ser tão forte, ele se choca sempre com as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em uma espécie de autodefesa, procura negar sua importância. Se você arranhar um russo, diz o provérbio, aparece o tártaro sob a pele. Analise qualquer emoção humana, não importa quão distante esteja da esfera da sexualidade, e você certamente encontrará esse impulso primordial, ao qual a própria vida deve a perpetuação.


George Sylvester Viereck: O senhor, sem dúvida, foi bem sucedido em transmitir esse ponto de vista aos escritores modernos. A psicanálise deu novas intensidades à literatura?


S. Freud: Também recebeu muito da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, e da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O Zaratustra diz: “A dor grita: Vai! Mas o prazer quer eternidade Pura, profundamente eternidade”. A psicanálise pode ser menos amplamente discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, a sua influência na literatura é imensa, porém Thomas Mann e Hugo von Hofmannsthak muito devem a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida, paralela ao meu próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente o que eu tento comunicar cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não é apenas um poeta, é também um cientista.


George Sylvester Viereck: O senhor não é apenas um cientista, mas também um poeta. A literatura americana está impregnada da psicanálise. Hupert Hughes Harvrey O'Higgins e outros fazem-se de seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance sem encontrar referência à psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O'Neill e Sydney Howard têm profunda dívida para com o senhor. The Silver Cord, por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo de Édipo.


S. Freud: Eu sei que eu apresento o cumprimento que há nessa constatação. Mas tenho receio da minha popularidade nos Estados Unidos. O interesse americano pela psicanálise não se aprofunda. A popularização leva à aceitação superficial sem estudo sério. As pessoas apenas repetem as frases que aprendem no teatro ou na imprensa. Pensam compreender algo da psicanálise porque brincam com seu jargão! Eu prefiro a ocupação intensa da psicanálise, tal como ocorre nos centros europeus. A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A Clark University concedeu-me um diploma honorário quando eu ainda era ignorado na Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuições originais à psicanálise. Os americanos são julgadores inteligentes, raramente pensadores criativos. Os médicos nos Estados Unidos, e ocasionalmente também na Europa, procuram monopolizar para si a psicanálise. Mas seria um perigo para a psicanálise deixá-la exclusivamente nas mãos dos médicos, pois uma formação exclusivamente médica é, com freqüência, um empecilho para o psicanalista. É sempre um empecilho, quando certas concepções científicas tradicionais ficam arraigadas no cérebro estudioso.


(Freud tem que dizer a verdade a qualquer preço! Ele não pode obrigar a si mesmo a agradar a América, onde está a maioria de seus admiradores. Apesar da sua intransigente integridade, Freud é a urbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando jamais intimidar o entrevistador. Raro é o visitante que deixa sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade! Havia escurecido. Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade que uma vez abrigara o esplendor imperial dos Habsburgos. Acompanhado da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que levavam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu cansado e triste, ao dar o seu adeus).


S. Freud: Não me faça parecer um pessimista (disse ele após o aperto de mão). Eu não tenho desprezo pelo mundo. Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz – ao menos não mais infeliz que os outros.


(O apito de meu trem soou na noite. O automóvel me conduzia rapidamente para a estação. Aos poucos o vulto ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância. E nunca mais o vi).





sábado, 14 de julho de 2012

Há 150 anos, Gustav Klimt!

Um gênio da pintura nascia há 150 anos em Baumgarten (Viena). O austríaco que pintava com folhas de ouro, escandalizou a Europa com sua arte obscena, de forte teor sexual. Teve várias exposições canceladas por chocar a opinião pública. Em um episódio notório, foi contratado pelo governo para pintar 3 quadros decorativos para as faculdades de Filosofia, Medicina e Direito, da recém inaugurada Universidade de Viena, mas recusou-se a seguir os temas propostos. Isso lhe custou uma retaliação política: sua nomeação para o cargo de professor da "Academia das Artes Decorativas" foi negada. Em protesto, Klimt devolveu os honorários ao Estado e recolheu seus quadros, que posteriormente foram tomados à força. Infelizmente A Filosofia, A Medicina e A Jurisprudência foram incendiados em maio de 1945 no Castelo de Immendorf pelas tropas SS em retirada na Segunda Guerra Mundial.

Filosofia (foto em preto e branco do original destruído).
Medicina (parcialmente destruído).
Jurisprudência (foto em preto e branco do original destruído).
Um dos seus quadros mais marcantes é Dânae. Na mitologia greco-romana, o rei Acrísio, ao consultar um oráculo, tem a notícia de que será morto por um de seus netos, o filho de Dânae. Então decide aprisioná-la, ainda virgem, numa torre de bronze, para que não venha a ter nenhum herdeiro. Porém, Zeus se apaixona por Dânae e, sob a forma de uma chuva dourada, adentra no interior da torre, fecundando-a, gerando Perseu. Na história da arte, a lenda foi tema de pintura para vários artistas. Para Klimt, ela assume a representação da procriação, captada como um instante eterno, sagrado e superior.

Dânae
Em Dânae (1907), a sua provocação se afirma de modo mais óbvio: junto à figura da mulher ruiva, adormecida, surge aquilo que muitos interpretam como uma torrente de moedas de ouro e espermatozóides. Além do agressivo nu, exposto por um robe de seda entreaberto, observam-se as bochechas ruborizadas, os olhos cerrados e as mãos contraídas, nos levando a supor que ela está tendo um orgasmo, um apelo sexual muito avançado para a época, a que muitos consideraram abertamente pornográfico.

Klimt projetou uma feminilidade pensada de forma autônoma, mergulhada e absorta em si, entregue às suas energias instintivas. Danae é um ícone do narcisismo feminino, de tal forma preocupada com ela própria que exclui qualquer outro objeto de amor para além do seu próprio corpo. O princípio masculino não se encontra patente, mas reduz-se ao símbolo abstrato de um retângulo negro no rio de ouro - apenas um ornamento entre os ornamentos. Como em vários outros trabalhos, Klimt representava o elemento masculino com retângulos e o feminino com círculos e esferas.

 O Beijo - Detalhe
Em homenagem ao famoso pintor, o fotógrafo espanhol Moises González realizou uma sequência de fotomontagens inspiradas em seus quadros mais famosos. Confira aqui.





quarta-feira, 11 de julho de 2012

Melancolia, Simbolismo e Arte

Ter consciência do papel que desempenhamos no mundo é tarefa difícil e reservada a poucos. A medida que estudamos melhor a história, as ciências e compreendemos as nuances das relações humanas, uma certa visão crítica se vai apurando e, com ela, a verdade faz cair por terra muitos dogmas e fantasias. A verdade traz respostas nem sempre agradáveis ou correspondentes ao que se deseja. Do contrário, ter a consciência e a lucidez é um duro despertar para uma realidade seca, vazia e dolorosa, uma visão de que o mundo não é belo, de que as pessoas são más, e que nosso papel no Cosmos é duvidoso. Em suma, a verdade dói. E como tal, para certas pessoas é melhor encarar a fantasia e a ilusão - a pílula azul da ilusão e da ignorância de Matrix ou, como escrevera certa vez Clarice Linspector em Lucidez em excesso:
       “Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do que, que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.


Essa dualidade entre realidade e fantasia é explorada por Lars Von Trier em Melancolia que, não por acaso, se utiliza sempre de dois elementos para desenvolver sua trama. São duas irmãs de comportamentos antagônicos, cuja história é contada separadamente em duas partes, enquanto se aguarda uma catastrófica colisão entre dois mundos. A Terra, representando tudo o que há de ruim e cuja eliminição "não fará falta a ninguém", é rota de colisão de um planeta errante, batizado de Melancolia ou Melancholia, no título original.


O filme é uma produção majoritariamente dinamarquesa com co-produção da Suécia, França, Alemanha e Itália. Em seu lançamento, no 64º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2011, levou prêmio de melhor atriz para Kirsten Dunst. Ainda concorria à Palma de Ouro, mas sua premiação foi bastante prejudicada devido a declaração do diretor, de que "entendia Hitler". Recebeu várias aclamações em diversos festivais pelo mundo. Na 24ª edição do European Film Awards (Prêmio do Cinema Europeu), obteve 8 indicações e 3 prêmios - melhor filme, melhor fotografia para Manuel Alberto Claro, e melhor direção de arte, para Jette Lehmann.


Historicamente a palavra 'melancolia' vem da Grécia antiga, e significa 'bilis negra'. O pensamento antigo de Hipócrates dizia que a saúde (eucrasia) era o equilíbrio entre 4 humores corporais: sangue, fleugma (ou pituíta), bílis amarela e bílis negra. Na doença (discrasia) o baço secretava mais bílis negra, 'escurecendo' o humor do indivíduo, levando-o a um estado de falta de entusiamo e desânimo para as atividades cotidianas.

Anne Louis Girodet, Hipócrates recusando presentes de Artaxerxes I

O planeta Melacolia, sempre esteve lá, mas ninguém percebia sua presença pois ele se encontrava oculto pelo sol, embora se aproximando a uma velocidade de 60 mil km/hora. No prólogo do filme, numa mescla entre as imagens mais marcantes do enredo, contemplamos, à distância, nossa própria destruição. Começa a "dança da morte", o balé de colisão entre os dois planetas, embalados ao som de Richard Wagner.




A escolha do tema de abertura da ópera Tristão e Isolda de Wagner, é uma das inúmeras representações simbólicas contidas na película. Pela lenda medieval, Tristão era o mais destacado cavaleiro do seu tio, o rei Marcos da Cornuália. Ganhou de batismo esse nome pois, quando veio ao mundo, sua mãe estava triste pela morte do marido em batalha, o pai que Tristão não conheceu. O rei confia a ele a missão de buscar a bela princesa Isolda da Irlanda, para desposá-lo. No caminho de volta, os dois tomam por engano uma poção de amor e se apaixonam, mas Isolda casa-se com Marcos e mantém com Tristão um amor proibido, desafiando as convenções sociais e religiosas. A descoberta resulta no banimento de Tristão da corte, que posteriormente se casa com Isolda, princesa da Bretanha, sem jamais esquecer a outra Isolda. Quando é mortalmente ferido por uma lança, ele manda buscar sua verdadeira amada, cuja presença o redimirá da morte. Enquanto está a caminho, sua esposa enciumada o convence de que ela não virá, uma desilusão que acelera a sua morte. Isolda chega tarde demais e, ao encontrá-lo morto, também morre de tristeza.


Outra alusão simbólica diz respeito à morte de Ofélia, em Hamlet, de William Shakespeare, retratada por John Everett Millais, pintor inglês pré-rafaelista. Após saber que Hamlet assassinara seu pai, que lhe dava segurança e proteção, Ofélia cai em depressão e morre. Seu corpo é encontrado num lago e supõe-se (mas a história não conta) que ela tenha se suicidado. Tal qual o material de divulgação da película, a pintura tenta resgatar o momento de tristeza de Ofélia, que é o mesmo vivido por Justine (Kirsten Dunst) em sua desilusão com o mundo.



A primeira parte do filme diz respeito ao casamento de Justine com Michael (Alexander Skarsgård). As cenas iniciais mostram o casal muito feliz numa limusine a caminho do cerimonial. A festa é paga pelo seu cunhado John (Kiefer Sutherland) e organizada pela sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg), que se esforçam para adequar Justine às normas da sociedade aristocrática em que vivem. Já no primeiro momento, as coisas não parecem se encaixar, como a limusine que é exagerada demais para a estrada estreita que dá acesso à mansão. Eles seguem a pé, gerando um atraso de 2 horas e deixando todos impacientes

A festa transcorre normalmente até o momento dos discursos, quando a atmosfera nos remete a situações de constrangimento constante. À medida que as pessoas vão se mostrando, Justine percebe que os personagens de seu mundo social são mesquinhos e egoístas. O pai rouba talheres da mesa e aparece ao lado de duas mulheres que aparenta galantear. A mãe (Charlotte Rampling), é uma mulher desiludida e aversa a cerimônias, que vive em constante conflito com o genro, reflexo de sua personalidade dominadora e de uma vida infeliz. Este, por sua vez, sempre alfinetando Justine sobre cada valor gasto, mesmo que para a sua riqueza isso seja insignificante. Seu chefe (Stellan Skarsgard) se aproveita da presença dos convidados para promover sua agência publicitária e se autopromover - dando a entender que é um patrão recompensador. O próprio noivo é inexpressivo, digno mais de compaixão que de seu amor, e ela sequer nutre algum sentimento. Paulatinamente a atmosfera de felicidade se decompõe. Sua vontade de pertencer a um mundo "politicamente correto" conflita com sua própria identidade. Ela não se sente preparada para um casamento de faz-de-contas; essa visão a sufoca, como se estivesse num pesadelo, com os membros atados a um emaranhado de fios pegajosos, lutando para se libertar.


Justine se revolta contra aquele microcosmo repugnante, transgredindo assumidamente valores e convenções. A cena em que discute com o seu chefe, é um dos grandes momentos do filme. Ao renegar o cargo de diretora de arte, ela se opõe à fantasia e futilidade que desvirtuam a verdade, um dos pilares da publicidade enganosa e, por que não, de uma vida de ilusões? Num surto de aparente insanidade, Justine troca os livros de arte abertos na estante de seu cunhado. Obras abstratas e racionais, de um período mais moderno na história, dão lugar a quadros clássicos predominantemente emocionais, com cenas conflituosas, em que há morte, culpa e sofrimento. Uma regressão simbólica que representa o seu momento atual. Demitir-se da profissão, do casamento e do convencionalismo é assumir o luto da própria vida social, conduzindo-a a um estado de morte em vida.

  Bosch (o mesmo quadro), detalhe para o inferno.
Hyeronimus Bosch, detalhe de "O jardim das delícias".



Caravaggio, "Davi, com a cabeça de Golias".




Pieter Bruegel 'o velho', "O reino da Cocanha".


























Escolher o caminho inverso ao da manada, a lucidez - tal qual Clarice Linspector, supracitada - é uma processo doloroso, de isolamento, que faz Justine mergulhar num grave estado depressivo. Na segunda parte do filme, ela está doente e é resgatada pela irmã, contra a vontade do marido. De acordo com John, seria uma "má influência" para a estabilidade de sua família reintroduzir a cunhada em suas vidas. Várias cenas do filme mostram Justine em comportamentos inadequados: ao urinar no campo de golfe de John, que ele se gaba por ter 18 buracos; ao se alimentar com as mãos ao invés de usar talheres; ao manter relações com um qualquer, sem preservativos; além do histórico de 'vexames' que, de acordo com Claire, acontecia de praxe nos eventos em família. Inconscientemente, parece que ela repete o mesmo comportamento da mãe, inclusive é ela a quem Justine recorre para aconselhamento.


O sol, a estrela que nos acalenta, é a grande máscara que esconde o planeta Melancolia. Isso dá margem a algumas interpretações suscitadas na segunda parte do filme, que trata da vida de Claire (e da maioria das pessoas na vida real). Por prover energia, luz e calor a estrela bem pode ser uma alusão ao conforto que nos trazem dinheiro, trabalho e demais elementos do cotidiano. Enquanto isso, a morte, vem se aproximando a cada dia, a "60 mil km/h". Enraizada psicologicamente na dependência masculina (modelo secular de uma sociedade patriarcal), para Claire, especificamente, o sol é John, seu provedor e porto seguro. Por outro lado, o sol também pode significar a nossa 'vã filosofia'. O 'iluminismo científico' que nos faz acreditar que somos muito importantes, desviando nosso foco da morte e da insignificância que representamos. Há um certo deboche com o academicismo na cena em que John diz para Claire sobre os cientistas: "Eles não erram!" Mas a ciência não encontrou uma maneira de evitar o fim. A morte é uma dura realidade jamais vencida. Claire recorre à ciência para não 'sentir' a morte, ao comprar psicotrópicos no vilarejo próximo. Ela pretende utilizá-los em último caso, pois receia que o marido, bem como os demais astrônomos, tenham errado nos cálculos. Não demora muito a perceber que tem razão. Jonh é o primeiro a constatar que não haverá salvação. Sua frustração é irreparável. Enquanto a esposa dorme, se suicida* covardemente, como um comandante que abandona o navio, sem amparar os demais passageiros. Morre sozinho, sem se despedir de ninguém. Seu egoísmo nem desperta muito remorso na esposa, como se o mito do herói houvesse caído por terra. Em Melancolia, parece que a figura masculina se ausenta nos momentos mais importantes. Com Justine, o pai se ausenta da casa quando ela termina o casamento. Como em outros trabalhos de Trier, a força nas dificuldades vem das mulheres (Justine, Claire, Grace em Dogville, etc.). Os homens são falhos e precisam se reinventar melhor. No caso específico de Melancolia, isso caberia ao garoto Leo (o ator mirim Cameron Spurr), filho de Claire.

*Coincidentemente ou não, Jack Bauer, o personagem de Kiefer Sutherland no seriado 24 Horas, é acostumado a salvar o mundo. Não sei se sua escolha foi intencional para este papel, mas é no mínimo curioso vê-lo interpretar o avesso de seu herói mais famoso.





As reações das duas irmãs ao iminente fim, se dão de maneiras opostas. No processo de recuperação, Justine se torna sensitiva, contrapondo à racionalidade de Claire. Como os animais, em diversas passagens no filme, instintivamente, ela percebe que o momento em que estão passando representa o último ato para todo o planeta. Por sua vez, Claire é uma mulher amedrontada. Sem o marido e desesperada, procura inutilmente escapar para algum lugar. Tenta chegar ao vilarejo mais próximo, mas o carro para na mesma ponte em que a irmã tentou atravessar a cavalo em várias ocasiões, o que sugere que as frustrações fazem parte da nossa existência, e que não temos controle absoluto sobre tudo. Ao retornar, propõe uma despedida no jardim da casa com música, vinho e luz de velas, sendo imediatamente repreendida pela irmã. Essa seria a maneira de Claire se preparar para a morte, como num acontecimento festivo.



Justine encara o fim com resignação. Ela está, de fato, mais preparada para morrer, porque já experimentou a morte de todas as suas crenças, em outra ocasião. Sua morte social no primeiro capítulo do filme, possibilita aceitar uma morte física. A cena em que se banha despida no reflexo da luz do astro (praticamente se relacionando com ele), além da beleza intrínseca que contemplamos como voyeurs, representa uma entrega incondicional à finitude, que chega a ser um alívio para toda a sua angústia em vida. Claire, por sua vez, sempre viu propósito em sua existência, em grande parte pela maternidade - um dos maiores propósitos de vida dos seres humanos. Seus problemas se iniciam ao questionar as previsões científicas do marido, moldadas apenas para dar suporte à falsa esperança de um final feliz. Com o suicídio de John e a certeza do fim eminente, desaba o seu mundo pessoal, planejado para ser perfeito e confortável. E agora, o que será do futuro do filho, da humanidade, de todo o planeta? Em Melancolia, todas as experiências em vida existiram apenas para preencher o grande vazio da humanidade em relação à sua própria finitude. Ao encarar o luto e a morte, a realidade é aterrorizante. Não há futuro, não há esperança, nem "vida em outros planetas". Estamos sós e desamparados.


Nos momentos finais do filme, Justine, Claire e Leo montam uma "caverna mágica" com alguns galhos escolhidos na floresta. De mãos dadas, aguardam o grande fim. Nesse momento a ciência não traz nenhum amparo. Apenas a imaginação e a fé podem proporcionar algum conforto. Após o choque, a terra é totalmente absorvida pelo planeta errante que é muito maior. O filme termina dando a sensação de que tanto faz estarmos vivos ou mortos, nada mudará o curso natural das coisas. Somos insignificantes para o Universo.


O filme guarda certa semelhança com dois grandes clássicos da ficção científica. 2001, Uma odisséia no espaço (1968) de Stanley Kubrick, e Solaris (1972) de Andrei Tarkovsky. Com relação a 2001, pode-se dizer que Melancolia é sua leitura ao avesso. Nas cenas inicias, houve a substituição da valsa pomposa de Johann Strauss pela ópera trágica de Wagner e, enquanto em sua obra Kubrick faz um elogio aos avanços da ciência, Trier a dismistifica. Na verdade Melancolia está mais para Solaris que para 2001. Visualmente, os dois planetas são idênticos, com oceanos e atmosfera (e cada um dá título homônimo ao seu filme). À maneira dos astronautas que orbitam Solaris, os personagens viajam aos confins de seu próprio interior influenciados pelo magnetismo perturbador do planeta Melancolia. No caso de Justine, ela praticamente se comunica com o astro em algumas cenas. Inclusive, tanto em Solaris como em Melancolia, há o suicídio de um personagem-chave. Definitivamente, os filmes de Tarkovsky servem de inspiração para Trier. Em uma entrevista, ele declarou: "Tarkovski é um deus real para mim. Quando eu vi O Espelho, Stalker e Andrei Rublev, mesmo num televisor pequeno, fiquei em êxtase. Se você quiser falar sobre religião, eu te respondo que minha relação religiosa é com Tarkovski. [...] Eu me sinto muito próximo a ele”. Os dois cineastas consideram 2001 um filme superficial, com muita ficção e pouca abordagem psicológica. Mas em termos de densidade e pessimismo, Trier é insuperável.


Em Melancolia, a profunda desilusão com a humanidade se extende a todos os seres vivos. Mais ainda: a todo o planeta, geologicamente responsável pela seleção natural, que nos fez chegar até aqui às custas do predatismo maléfico e egoísta. A Terra, como um todo, é má. A visão pessimista de Lars Von Trier se traduz no quadro Caçadores da Neve, de Bruegel, exibido em várias passagens do filme. Nele, temos um grupo de caçadores voltando frustrados de uma caçada improdutiva. Os cachorros estão capisbaixos e os caçadores com estandartes vazios. Que péssima notícia saberá o vilarejo ao qual os caçadores se dirigem, enquanto os habitantes, nas mais diversas atividades, aguardam com ansiedade as boas novas. Lars Von Trier é o caçador sem nada a oferecer ao vilarejo, sua platéia espectadora.

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