segunda-feira, 1 de julho de 2013

A quem se destinam as notícias?


Qual baderna?


Em agosto de 1792, Maria Antonieta devia achar que os que se juntavam na frente das Tuileries eram baderneiros ignorantes. 

Em dezembro de 1773, o governador inglês da província de Massachusetts devia pensar a mesma coisa dos "filhos da liberdade", que se disfarçavam de índios, subiam nos navios, jogavam o chá no mar e não queriam pagar os impostos. 

Na época, Samuel Adams explicou que, mesmo se esses homens fossem apenas vândalos descontrolados, eles seriam, de fato, os defensores dos direitos básicos do povo das colônias. 

A maioria dos paulistanos (e, suponho, dos brasileiros) pensa como Samuel Adams e deseja que as manifestações continuem, por uma razão que está muito além da tarifa dos ônibus: a relação do poder público com os cidadãos do Brasil é, sistematicamente, há muito tempo, de descaso e desrespeito, se não de abuso. 

A escola e a saúde públicas são o destino resignado dos desfavorecidos. A insegurança se tornou uma condição existencial, tanto no espaço público quanto dentro da própria casa de cada um. O atraso da Justiça garante impunidades iníquas. 

Claro, nossa arrecadação per capita é menos de um terço da dos EUA, por exemplo. Ou seja, talvez tenhamos os serviços públicos que podemos nos permitir. 

Convenhamos, seria mais fácil aceitar essa triste realidade 1) se a corrupção não fosse endêmica e capilar, especialmente na administração pública, 2) se os governantes baixassem o tom ufanista de nossos supostos progressos e sucessos, 3) se a administração pública não fosse cronicamente abusiva e desrespeitosa dos cidadãos e de seus direitos. 

Além disso, o dinheiro no Brasil compra uma cidadania VIP, na qual não só escola, saúde e segurança são serviços particulares, mas a própria relação com a administração pública é filtrada por um exército de facilitadores e despachantes. 

A sensação de injustiça é exacerbada pela constatação de que muitos representantes procuram ser eleitos para ganhar acesso à dita cidadania VIP. Por isso, hoje, circulam aos borbotões, na internet, propostas de reforma política em que, por exemplo, 1) os membros do Legislativo e do Executivo seriam obrigados a recorrer, para eles mesmos e para seus filhos, aos serviços da educação e da saúde públicas, 2) os congressistas não teriam nenhum regime privilegiado de aposentadoria, 3) os congressistas não poderiam votar o aumento de seus próprios salários etc. 

Para piorar, os representantes parecem se preocupar pouco com os compromissos de seu mandato e muito com sua própria permanência nos privilégios do poder. Por isso, por exemplo, eles compõem alianças que desrespeitam e humilham seus próprios eleitores. 

Nesse contexto espantoso, é patética a indignação com os "baderneiros" e mesmo com a margem de delinquentes comuns que se agregaram às manifestações. 

O poder, quando não é efeito de graça divina, vem dos próprios cidadãos e é condicional: só posso reconhecer e respeitar a autoridade que me reconhece e me respeita. Uma autoridade que me desrespeita merece uma violência equivalente à que ela exerce contra mim. 

Além disso, é bom não perder o senso das proporções. "Olhe, olhe!", grita um repórter, enquanto a tela mostra alguém que foge de uma loja saqueada levando algo no ombro. Tudo bem, estou olhando e não estou gostando, mas minha indignação é mais antiga e por saques muito maiores. 

Outro repórter pensa nos coitados que perderão o avião, em Cumbica, por causa dos manifestantes que bloqueiam o acesso ao aeroporto. Mas o verdadeiro desrespeito é o de nunca ter construído uma linha de trem entre São Paulo e o maior aeroporto do país. 

O ministro Antonio Patriota se declarou indignado com o vandalismo contra o Palácio do Itamaraty. Com um pouco de humor negro, eu poderia suspeitar que os apedrejadores talvez tenham precisado um dia dos serviços de um consulado no exterior. Mas, deixemos. Apenas pergunto: se esses forem vândalos, então o que são, por exemplo, os latifundiários desmatadores da Amazônia? 

Enfim, à presidenta Dilma gostaria de dizer: não acredito que os "baderneiros" das últimas semanas tenham envergonhado o Brasil --nem mesmo quando alguns depredaram o patrimônio público. Presidenta, você sabe isto mais e melhor do que muitos de nós: o que envergonha o Brasil é uma outra baderna, bem mais violenta, que dura há 500 anos e que gostaríamos que parasse. 


Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de "Ilustrada".

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O Som Ao Redor por John Powers, crítico da Vogue.

VOGUE Film & TV

Microcosms: Little White Lies and Neighboring Sounds



 Gustavo Jahn and Irma Brown in Neighboring Sound


“Brazil is not a serious country,” Charles de Gaulle once said, and though he wasn’t right, you can’t blame him for thinking so. After all, most of what we know about this huge, populous land is either cheerfully carnal—from samba schools and soccer to the Girl from Ipanema—or else terrifyingly bleak, like those scenes in such moves as City of God where little kids in the favelas gun each other down.

Of course, beyond the mythology, there’s also the real Brazil. And it, like China, has enjoyed a long economic boom that has pushed millions into the middle class. It’s this modernizing, increasingly prosperous Brazil that we get in Neighboring Sounds, the internationally acclaimed debut feature by Kleber Mendonça Filho. Sly, funny, and deeply unsettling, this isn’t merely the best new movie I’ve seen this year, it may well be the best Brazilian movie since the 1970s.

Neighboring Sounds takes place in Mendonça’s home city of Recife, more precisely on a middle-class street by the sea where the last remaining family houses are being replaced by concrete high-rises filled with plasma TVs, kids studying Mandarin, and couples making love, sometimes illicitly. Ruling the roost is Francisco (W. J. Solha), a white-bearded, seemingly affable patrón who owns most of the neighborhood with money from the family’s sugar plantation. Francisco’s properties contain a wide range of people. There are his two grandsons, hangdog João (Gustavo Jahn), who glumly sells real estate, and sociopathic Dinho (Yuri Holanda), who looks like Ryan Phillippe but has the soul of Joe Pesci. There’s stay-at-home mom Bia (Maeve Jinkings) who gets stoned and kinky when her kids are at school. And, out on the street, there’s a team of security guards led by Clodoaldo (Irandhir Santos), an ambiguous fellow who protects the residents from terrors that seem more imagined than real.

Like a low-key Robert Altman picture or maybe an HBO series by Luis Buñuel, the movie sucks you in with interweaving characters whose behavior—be it drugging a barking dog, arguing over firing a night watchman, or simply mopping the floor—gradually reveals a larger pattern of social meaning. In the process, Mendonça offers us a CAT scan of twenty-first century Brazil, in which a sleek new world appears to be rising yet the worm-eaten old values live on within it.

A máquina de lavar pós Kleber Mendonça Filho

Ilustração de João Solimeu para tema de cartaz do filme O Som ao Redor. Muito criativa!