Como definir um trabalho que permanece atual após quase 200 anos? Se pensarmos em música, qual seria a definição de uma canção considerada a obra-prima de um compositor que a concluiu quase totalmente surdo? Se formos além, considerando que a mesma canção inspirou generais, presidentes, chefes-de-estado, da mesma forma que inspira no mais reles dos mortais, um sentimento de onipotência, orgulho e grandiosidade?
A 9a. Sinfonia de Beethoven não é somente uma música. Não é algo simples de se definir. Sua importância é tão marcante que transpassa gerações sendo imediatamente reconhecida e adorada por todos, independente da idade ou do gosto musical. Ela embala os momentos mais marcantes da nossa vida - uma formatura, uma premiação, uma celebração de grande importância. E é preciso compreender o momento histórico em que foi criada, no auge dos ideais iluministas, de impacto significativo para todos as gerações advindas.
História
Ludwig van Beethoven nasceu em 1770. Já era um talento musical aos 8 anos de idade e escreveu suas primeiras composições aos 11, um garoto prodígio que foi considerado como o 2o. Mozart (que era 14 anos mais velho). Os seus progressos foram de tal forma notáveis que aos 15 anos, já era organista-assistente da Capela Eleitoral e, logo depois, violoncelista e professor da Orquestra da Corte, assumindo já a chefia da família, devido ao alcoolismo do pai.
E na idade adulta |
Beethoven aos 13 anos |
Nesta época, o jovem Conde de Waldstein tornou-se amigo e mecenas, a quem mais tarde Beethoven dedicou algumas das suas obras, como gratidão. Percebendo o seu grande talento, enviou-o, em 1787, para Viena, a fim de ir estudar com Joseph Haydn. O Arquiduque de Áustria, Maximiliano, subsidiou então os seus estudos. No entanto, teve que regressar pouco tempo depois, devido à morte de sua mãe e ao agravamento do alcoolismo do pai. A partir daí, Ludwig, com apenas dezessete anos de idade, teve que lutar contra dificuldades financeiras.
O regresso de Viena o motivou a um curso de literatura. Foi aí que teve o seu primeiro contato com os Ideais da Revolução Francesa, com o Iluminismo e com o movimento literário romântico Sturm und Drang (tradução significando Tempestade e Paixão) que tinha Friedrich von Schiller e Johann Wolfgang von Goethe como líderes mais proeminentes, e que exerceriam enorme influência em todos os setores culturais na Alemanha.
Maximiliano, Arquiduque da Áustria |
Conde de Waldstein |
Johann Wolfgang von Goethe |
Friedrich von Schiller |
Schiller é o autor de "Ode à Alegria", poema que expressa uma visão idealista da raça humana como irmandade, uma visão que tanto ele como Beethoven partilhavam. A letra do poema foi incorporada ao 4o. movimento da 9a. Sinfonia, sendo a primeira vez em que se utilizava um componente vocal numa sinfonia, tarefa de enorme dificuldade para Beethoven que realizou inúmeras tentativas de 1793 a 1824.
"Quando ele começou a trabalhar no quarto movimento, a batalha recomeçou, mais intensa do que nunca. Sua meta era a de encontrar uma maneira apropriada de introduzir a ode de Schiller. Um dia ele entrou na sala gritando: 'Consegui, consegui!' E então me mostrou um caderno com as palavras 'Cantemos a ode do imortal Schiller'". Escreveu o biógrafo da época Anton Schindler. No entanto, esta introdução acabou nunca chegando à obra final, e Beethoven ainda passou muito tempo reescrevendo aquela parte até que ela atingisse a forma conhecida atualmente.
Beethoven estava ansioso para ver sua obra executada em Berlim o mais rápido possível, após terminá-la. Acreditava que o gosto musical de Viena estivesse dominado por compositores italianos como Gioacchino Rossini. Quando seus amigos e patronos ouviram isso, insistiram para que ele estreasse a sinfonia em Viena. A Nona Sinfonia foi executada pela primeira vez no dia 7 de maio de 1824, no Kärntnertortheater. Esta era a primeira aparição do compositor sobre um palco em doze anos; a casa estava cheia.
Embora a performance tenha sido regida oficialmente pelo mestre de capela do teatro, Beethoven dividiu o palco com ele. Mas os músicos, que sabiam do seu estado de surdez, não lhe deram atenção. No início de cada parte, Beethoven, sentado ao palco, dava indicações de tempo, virando as páginas de sua partitura e dando marcações à uma orquestra que não podia ouvir.
"O próprio Beethoven regeu a peça; quer dizer, ele ficou ali diante do atril e gesticulou furiosamente. Em certos momentos se erguia, noutros se encolhia no solo, e se movimentava como se quisesse tocar ele mesmo todos os instrumentos e cantar por todo o coro. Todos os músicos não prestaram atenção ao seu ritmo enquanto tocavam". Escreveu na época o violista Josef Böhm.
Enquanto a platéia aplaudia, Beethoven, que, em sua "regência imaginária", ainda estava atrasado em diversos compassos em relação à música que já havia terminado, continuava a reger, acompanhando a partitura. Então, a contralto teria ido a ele e o virado em direção ao público, para aceitar suas exortações e aplausos.
"O público recebeu o herói musical com o mais absoluto respeito e simpatia, e ouviu as suas criações maravilhosas, gigantescas, com a mais concentrada das atenções, irrompendo em jubilantes aplausos, frequentemente durante os movimentos, e, repetidamente, ao fim de cada um." Publicação de um jornal da época.
Toda a platéia o aplaudiu de pé por cinco diversas vezes; lenços foram erguidos ao ar, assim como chapéus e mãos, para que ele, que não podia ouvir os aplausos, pudesse ao menos vê-los. Beethoven deixou o concerto extremamente comovido.
Repercussões
A 9a. sinfonia tem um papel cultural de extrema relevância no mundo atual. Em especial o 4o. movimento, que foi escolhido em 1972 para ser o hino do Conselho da Europa (com arranjos oficiais de Herbert von Karajan) e mais tarde, em 1985, como hino da União Européia.
Outra prova de sua importância na cultura atual foi o valor de 3,3 milhões de dólares atingido pela venda de um dos seus manuscritos originais, feita em 2003 pela Sotheby's, de Londres. Segundo o chefe do departamento de manuscritos da Sotheby's à época, Stephen Roe, a sinfonia "é um dos maiores feitos do homem, ao lado do Hamlet e do Rei Lear de Shakespeare".
Não por acaso, em Laranja Mecânica - romance de 1962, adaptado para o cinema em 1971 por ninguém menos que Stanley Kubrick - a música era a grande inspiração do personagem principal, Alex, vivido por Malcolm McDowell. O filme conta uma história futurista de um jovem com grande vitalidade e energia, mas que se utiliza destes atributos para o mal. Ele é líder de uma gangue de bandidos extremamente violentos, que, após uma série de crimes hediondos é preso pela polícia e, na penitenciária, se submete por opção a um tratamento experimental que abreviará sua pena mas o tornará totalmente indefeso. A 9a. Sinfonia é utilizada diversas vezes no filme, representando a própria força vital de Alex que, após a 'lavagem cerebral' se torna incapaz inclusive de ouvi-la. Aliás, a 9a. Sinfonia em Laranja Mecânica é como a genialidade dentro da genialidade, algo tão complexo de se imaginar que melhor mesmo é assistir. Ou melhor, contemplar:
A violência de Laranja Mecância é apenas uma metáfora para que possamos explicar nosso próprio comportamento paradoxal. Se por um lado podemos canalizar nossa energia para o bem, construtivamente, realizando obras antológicas e geniais, como a própria 9a. Sinfonia, também podemos ser altamente destrutivos e genocidas, faceta bem representada neste trecho do filme pelos horrores da 2a. guerra. E por falar nisso, também os nazistas se utilizavam da 9a. Sinfonia para celebrar suas conquistas e comemorar seus acontecimentos. No aniversário de Hitler em 1942, um dos mais importantes maestros da época, Wilhelm Fürtwangler, rege a contra-gosto (pois ele não apoiava o nazismo) a 9a. Sinfonia, numa das mais brilhantes interpretações da mesma. Atenção para os detalhes do vídeo: nele se encontra a alta cúpula nazista (incluindo o coronel Claus von Stauffenberg, aquele retratado por Tom Cruise em Operação Valquíria); os percussionistas no final do vídeo se sobressaem conferindo um caráter marcial à apresentação; o filme é cortado antes do tempo mas, durante os aplausos, Fürtwangler recebe os cumprimentos de Joseph Goebbels, chefe da propaganda nazista e se vira para limpar a mão com um lenço:
Poderíamos dizer, portanto, que a 9a. Sinfonia se confunde com a nossa própria representação, enquanto seres humanos. Composta num momento equivalente ao nosso despertar - o Iluminismo, é sob seus acordes, ritmo e letra que o mundo tem hoje sua forma atual. É um retrato musicado da alma de todos os seres humanos, controversos por essência, frágeis por natureza e extremamente criativos. Se a linha que separa a loucura da sanidade é tênue para nós, existe um fosso, um Grand Canyon, separando a genialidade da mediocridade, e aqui nos referimos à genialidade de Ludwig van Beethoven.
"A Criação de Adão" de Michelangelo (a criatividade é uma manifestação divina?) |
"...Ó homens que me tendes em conta de rancoroso, insociável e misantropo, como vos enganais. Não conheceis as secretas razões que me forçam a parecer deste modo..."
Ludwig van Beethoven (no seu testamento)
"Ode à Alegria" (hino à humanidade):
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Cheguei aqui via google, procurando a letra da Ode à Alegria. Seu texto sobre a Nona Sinfonia é ótimo! Eu assisti ao ensaio aberto da OSESP hoje. Foi emocionante!
ResponderExcluirGisele,
ResponderExcluirEstou indo a São Paulo hoje para assistir à apresentação gratuita do Parque da Independência no sábado e, quem sabe, tentar ainda comprar de cambistas ingressos para a apresentação do domingo na Sala São Paulo, pois não consegui através do site, se esgotaram rapidamente.
Esse é o grande legado da 9a. sinfonia: ela é atemporal. Sua consagração contagia gerações, por isso é perfeitamente compreensível a grande procura pelos ingressos.
Obrigado pela visita ao Blog!