domingo, 13 de fevereiro de 2011

A busca pelo autoconhecimento em 4 atos



- Tenho um deverzinho de casa para você. Vá para casa e se masturbe!

Esse é o conselho chave, que o renomado coreógrafo Thomas Leroy (Vincent Cassel) oferece a Nina Sayers (Natalie Portman) em O Cisne Negro. O que seria uma tarefa aparentemente simples, exige de Nina muito mais que seus exaustivos ensaios em busca da perfeição na dança. Uma barreira difícil a ser quebrada. Aliás, é algo praticamente inconcebível para ela, que se sentiu nitidamente constrangida com a abordagem do tema por Leroy:

- E você gosta de fazer amor? 
- Perdão?
- Qual é! Sexo? Você gosta? Precisamos ser capazes de falar sobre isto.


O ambiente doméstico de Nina é infantilizador. Ursinhos de pelúcia e bonecas de pano nas prateleiras. Uma caixinha de música para guardar seus adereços e lençóis de cama cor-de-rosa. Sua rotina resume-se, basicamente, a ensaiar na companhia de dança, comer e dormir. Namorados? 'Alguns, mas nada sério'. Sua melhor amiga e confidente é a própria mãe, Erica Sayers (Barbara Hershey), uma ex-bailarina que sequer chegou perto do estrelato e projeta na filha suas frustrações. Ela controla todos os passos de Nina, ditando os horários, a alimentação, escolhendo (ou repelindo) amizades, cerceando sua privacidade inclusive via celular. Essa simbiose, do binômio mãe-feto, acaba repercutindo no psicológico da filha: uma personalidade frágil, insegura, cleptomaníca e bulímica, que sublima todos os seus desejos em função do trabalho.

No trabalho, ela encontra um ambiente de extrema competitividade no qual se destaca pelo domínio da técnica, despertando admiração do ambíguo Leroy: crítico rigoroso (quase tirânico) que adora um 'teste do sofá' com suas 'princesas'. Não ficou claro se a admiração de Leroy é puramente sexual, mas ele a  escolhe para o papel principal numa adaptação de O Lago dos Cisnes (de Tchaikovsky). No entanto, segundo a sua visão adaptativa, a bailarina principal teria que interpretar ao mesmo tempo o Cisne Branco e o Cisne Negro, para dar mais realismo 'visceral' à trama, uma vez que, na versão original, o Príncipe Siegfried confunde-se de amor por ambas. 

Nina é a personificação da menina linda, pura e virginal aprisionada no corpo de um Cisne Branco pelo diabólico feiticeiro Rothbart (nesse caso, sua própria mãe). Para interpretar o Cisne Branco, basta representar a si própria, algo que não exige o mínimo esforço. Mas ela não convençe a Leroy (nem a nós) que é capaz de interpretar o Cisne Negro. É desprovida da malícia, dissimulação e da sedutora energia sexual que se espera de uma vilã.

- Mostre-nos seu Cisne Negro, Nina. Seduza-nos!

Diz Leroy em vão. É nítida a sua decepção com a escolha que fez.  Ele representa mais que um incentivador para ela; é a figura dominadora que seu inconsciente desestruturado precisa para encontrar equilíbrio (e reviver suas neuroses maternais). Nina pressente uma possível rejeição; se cobra ainda mais com a pressão e as humilhações públicas por parte do coreógrafo. Rasteja pelo seu reconhecimento quando começa a perceber a possibilidade de ser substituída por uma outra bailarina, a fascinante Lily (Myla Kunis). Recém chegada à companhia, com personalidade oposta à dela, Lily é despreocupada, espontânea, independente e sexualmente madura. O medo de Nina em ser substituída por Lily nesse ponto assume um caráter de paranóia e ciúmes. Como toda relação de ciúmes em Psicologia é um misto de insegurança e desejo sexual pelo rival, Lily acaba despertando sentimentos ambíguos em Nina (representados através de um sonho lésbico, durante a noite).


E finalmente Nina começa a "fazer o dever de casa", do início deste texto. Concomitantemente, e como não poderia deixar de ser, questiona o papel superprotetor da mãe. A partir daí, o Cisne Negro desperta naturamente nela: se desfaz de todos os ursinhos de pelúcia, destrói sua caixinha de música, sai de casa, briga com a mãe. As cenas deste despertar são fortes e dramáticas, como todos os conflitos precisam ser. O diretor Darren Aronofsky apela para muito sangue, terror e recursos especiais, já consagrados em outros trabalhos como Pi e Réquiem Para Um Sonho.


Agora resolvida de suas questões conflituosas, confiante sexualmente e livre, Nina é capaz de tudo para que não seja substituída - se preciso pode até matar por isso. Não é necessário fazer nenhum esforço, todavia. Sua personalidade agora seduz a todos, sua atuação é brilhante, a platéia entusiasmada aplaude de pé sua performance como Cisne Negro. Mas ela deseja a perfeição: é preciso acabar com todos os resquícios de castidade, pureza, insegurança, fragilidade, medo e assim encontrar leveza, despreocupação, atitude, vigor, luxúria. Nina opta por assassinar o seu Cisne Branco interior com cacos do espelho - como é brilhante isso! - que refletia a sua imagem atordoada de outrora.  


Faz muito tempo que um filme não me entusiasma tanto como O Cisne Negro. Uma verdadeira obra-prima do começo ao fim. Atuações brilhantes, não só de Porter, que vai levar o Oscar sem sombra de dúvidas, mas de todos os demais que adicionaram doses tituladas de genialidade. Exemplifico: sem nenhuma experiência prévia em dança, Myla Kunis afirmou ter se desdobrado para parecer convincente no papel. "Treinei por quatro meses, sete dias por semana, cinco horas por dia", contou. "Perdi 9 kg, rompi um ligamento, desloquei o ombro e estou com duas cicatrizes nas costas, mas valeu cada minuto."

Em alguns momentos assistindo a Cisne Negro, me senti como se estivesse AO VIVO observando o próprio Degas pintando seus belos quadros de bailarinas e ouvindo o próprio Karajan regendo a Sinfônica de Berlim! A leveza dos movimentos da dança, a proximidade da câmera aos personagens e o som inconfundível das valsas de Tchaikovsky são uma experiência única de que a arte de fato existe e é necessária, assim como são necessários comer e beber.

"bebida é água, comida é pasto... a gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão, balé..." (Titãs)



Na minha opinião as cenas mais belas acontecem na dança no início do filme...

- Tive o mais louco dos sonhos na noite passada. Eu estava dançando o Cisne Branco. Mas era uma coreografia diferente. Parecia mais a do Bolshoi. Era o prólogo. Quando Rothbart lança seu feitiço.


...e no final, quando Nina se transforma em Cisne Negro, de arrepiar!



Meu único ponto de discordância é que as cenas de Portman como Cisne Branco parecem arrastadas demais em dor e sofrimento; a angústia só melhora após sua transformação em Cisne Negro. Talvez estenderia mais ao telespectador esse momento, tão desejado por todos e tão curto. Sei que isso é um tanto utópico pela natureza de Darren Aronofsky em mostrar a dor, e também porque achei o final do filme muitíssimo apropriado (tinha que acabar ali mesmo).

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